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É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença

Otto Lara Resende, em Vista Cansada, nos confronta com uma verdade desconcertante: o hábito turva nossos olhos, esconde o extraordinário no ordinário e nos anestesia diante daquilo que nos cerca. Um porteiro, presença constante por 32 anos, só foi notado ao morrer. Em sua ausência, surge uma reflexão essencial: o que realmente vemos no cotidiano?

Essa pergunta ecoa nas origens do pensamento filosófico. Os filósofos pré-socráticos – também chamados de filósofos da natureza – buscavam compreender o que compõe a realidade. Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito e tantos outros dedicaram suas vidas a desvendar o princípio fundamental que está por trás do que é visível. Para Tales, tudo era água; para Heráclito, o fogo simbolizava a constante mudança. Anaxágoras via na infinidade de partículas – sementes de tudo – a essência do real.

Mas o que esses pensadores antigos podem nos ensinar sobre a banalização do olhar? Para eles, o mundo era um mistério a ser desvendado, algo que despertava fascínio e questionamento. Eles não viam a realidade como algo dado ou trivial, mas como uma manifestação profunda e complexa. Heráclito, por exemplo, afirmava que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois tanto o rio quanto quem nele entra estão em constante transformação. Essa visão convida a olhar para o habitual como se fosse a primeira vez, a perceber o fluxo invisível da mudança.

Otto nos alerta que a rotina nos rouba essa capacidade. Vemos sem ver, tocamos sem sentir, ouvimos sem escutar. O que é a realidade, então? É aquilo que vemos ou aquilo que ignoramos? É o que está diante de nós ou o que não percebemos por estar sempre lá?

Os filósofos da natureza nos ensinam que a realidade é composta tanto pelo tangível quanto pelo intangível. Ela é a água que flui, o ar que respiramos, o fogo que transforma, o vazio que conecta. É, também, a consciência do olhar, a capacidade de ver o extraordinário no ordinário. Quando deixamos de perceber o porteiro, a rua, os rostos familiares, perdemos não só o contato com o mundo externo, mas também com o nosso próprio ser.

Retomar o olhar da criança, do poeta ou do filósofo não é apenas um exercício estético, mas uma reconexão com o real. Talvez a pergunta que resuma a inquietação de Otto seja a mesma que moveu os primeiros filósofos: o que há, afinal, além do que nossos olhos acostumados já não veem?

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